terça-feira, 28 de janeiro de 2014

sobre digressões, desatenções e invisibilidades

Tenho um defeito identificado faz muito por mim e que pessoas próximas bem conhecem, que é o de não conseguir prender a atenção.

É muito difícil, sabe. Presto atenção em uma linha de raciocínio e daqui a pouco um flash de ideia vem na mente, ou de repente uma borboleta bonita passa na minha frente, pode ser até que algum transeunte passe trajando uma histórica camisa colecionável de qualquer clube obscuro de futebol. Lá se foi minha atenção, restando a quem emite saliva no canto da boca, olhos turvos, sorriso de canto de boca ou simplesmente uma ideia atravessada sobre qualquer coisa desconexa ao comentado.

Isso não acontece só com emissor/a mas também quando estou sozinho comigo. Começo a ter uma ideia bacana que, costurando, amarrando e desenhando na cabeça já vira uma tentativa de lembrar o que diabos Yusuke Urameshi fez para ter que disputar um torneio no makai (ah vai procurar no teu saite de pesquisas favorito).

Eis que estava sentado em um bar, divagando sobre ações ou omissões que muito me doem no cotidiano quando passa por baixo da minha cadeira uma apressada barata, certamente ciente dos boatos que aquele teto que outrora estava sobre sua cabeça tende a perseguir sua nojenta porém inofensiva espécie até a inevitável morte. Passa apavorada por outros tetos tão ofensivos, porém mais desatentos quanto os que eu a apresentava, até chegar até uma sacola de lixo em que um menino negro, máximo de quatorze anos, revirava e "selecionava" plástico e alumínio em outra sacola.

Logo me veio um belíssimo texto falando do Bolsa Família e a indescritível liberdade que deu para inúmeras famílias pobres para que, enfim, saíssem de empregos miseráveis e beirando a escravidão para que pudessem optar pela dignidade.

Sim, a dignidade custa, e não somos donos dela.

Lembro de algumas casas da Dona Augusta, rua que faz minha morada por mais alguns meses, antiga região de chácaras, e seus atuais donos que, em 2014, querem "ajudar" pessoas pobres que transitam pela região com a oferta de capinar a calçada, cortar a grama, varrer o pátio, tudo por dez pilas.

- A gente até tenta ajudar, mas é vagabundo, não quer trabalhar, por isso tá no que tá - dizem. Pagar um valor digno pelo trabalho não faz sentido, afinal vai usar com porcaria.

Lembrei do menino de novo, "maloqueiro" como dizia na adolescência, exercendo com mais atenção que eu seu labor.

Me veio na cabeça que sua família pode ser beneficiária do Bolsa Família.

E me veio na cabeça o que algumas pessoas entrevistadas em consultas no escritório e em outros espaços que advogo comentam: a prefeitura força a barra para que saiam de sua comunidade, pois algo que vai beneficiar Porto Alegre acontecerá naquele espaço.

Enquanto um cardume de operários remove, terraplana, asfalta, faz sei mais lá o que em prol de sei lá qual Porto Alegre, um conflito entre uma política pública linda e uma maléfica aceleração de violação de direitos humanos escava uma sacola preta em busca de dois reais a mais.

 E tudo me parece tão desconexo quanto meu pensamento numa noite de calor imenso em que só queria me concentrar questões pessoais.