quarta-feira, 9 de abril de 2014

sobre justiças

Como a prática acabou me mostrando, sexta não é um dia dos mais movimentados em um escritório de advocacia. E aquela sexta-feira 13 de 2008 estava bastante modorrenta, com um silêncio em que as moscas se constrangiam em zunir enquanto revisava um paper para a pós-graduação. A manhã terminava quando meu pai me chamou para almoçar, quando bateram na porta.

Creio que a expressão "bater na porta" é literal para 90% dos escritórios de advocacia no Brasil. A prática é diferente de outras profissões, as pessoas ainda procuram um escritório por placa no prédio, indicação da portaria, folhetos etc. E é por isso que abrimos a porta para o menino adolescente que ingressou no escritório quando terminávamos de conversar sobre algumas arestas de um processo que estava em cima da mesa.

Um caso como qualquer outro, uma demissão injusta, um patrão filha-da-puta com um cara pobre e humilde. Meu pai terminou a entrevista, fiquei na minha sala encerrando a revisão do bendito trabalho que deveria entregar naquela mesma noite. Saiu o menino, conversamos sobre a merda que é depender de empregador que explora moleque e depois sequer dá algum tipo de auxílio quando bate novamente na porta o menino, falando agora de uma pensão alimentícia que esqueceu de mencionar.

Estava entrevistando ele de pé, escorado na janela com uma garrafa d'água na mão, fazendo perguntas sobre o pai, onde trabalhava, estava registrado na identidade, era próximo, acompanhou a infância e adolescência, questões que são necessárias para humanizar uma entrevista robótica, além de ter elementos importantes para o caso. Foi quando ele sacou uma arma que eu ainda não tive o desprazer de ver maior.

As entrevistas eram um subterfúgio para que pudesse efetuar um roubo no nosso escritório. Havia acompanhado a rotina, identificou itens fáceis de colocar na sua surrada mochila e uma facilidade em sair sem ser identificado em um prédio de movimentação tranquila, pois bem, era uma sexta-feira e isso já foi explicado.

Não precisamos trocar muitas palavras, logo fomos colocados de cara para o chão e posteriormente amarrados, enquanto ele tinha livre acesso ao nosso escritório. Bens materiais foram levados, nossa dignidade ficou abalada, houve um certo trauma e uma dificuldade em encarar o trajeto até o trabalho por alguns bons dias, e bem, a certeza de que o ateísmo era uma convicção e uma certeza, pois eu e o pai do aniversariante do natal não encontramos aquele famoso canal de comunicação que muitos e muitas conseguem ter em momentos como esse.

Passaram-se quase seis anos. É tempo suficiente para poder colocar de maneira madura algumas conclusões acerca do fato, de maneira clara, limpa, consciente.

Peguei a sexta-feira 13 e transformei em um aniversário alternativo. É um dia que gosto de refletir sobre algumas coisas que cercam a minha vida, respirar fundo, analisar o mundo, o universo e tudo mais com olhos de novidade e beber. Bastante. Mesmo, muito. E é bom.

Também descobri que não sinto rancor. E fui obrigado a revisitar esse dia mentalmente depois que o Brasil começou a viver essa crise de Gotham, com justiceiros bradando por justiça, acorrentando pessoas pobres como meu algoz em postes, matando, justificando atitudes horríveis com uma alegação de legítima defesa.

Até onde eu sei o rapaz não foi preso, encontrado, não respondeu processo algum. E eu gostaria que ele respondesse. Gostaria que encontrasse um sistema que permitisse um olhar para o delito de uma maneira reflexiva e regenerativa. Mas não me importo com ele solto também. Utopicamente, gostaria que uma outra vida fosse permitida, que o roubo não fosse mais uma necessidade, ou uma opção de auferir qualquer tipo de vantagem econômica.

Também não quero passar por nada parecido, nem de longe. Tomamos algumas precauções no escritório e parecem eficazes.

Eu não ganho nada com a morte de alguém, absolutamente nada. Não sentiria prazer em saber que esse menino foi morto. Não me traria mais segurança, sentimento de vitória ou de justiça. Agora, se eu soubesse de uma regeneração, se eu ficasse sabendo que ele respondeu ao crime e foi ressocializado, eu me sentiria feliz.

Hoje não posso me sentir exatamente feliz com o resultado que tenho, mas me sinto com esperança, e alimento ela com esforços para que um dia o roubo seja uma opção com menos adesão e os presídios e abrigos tragam ressocialização e dignidade para quem errou. Sem sangue nas mãos, sem vingança, sem nenhum peso nas minhas costas.

Mas com sextas-feiras 13 mais alegres, abrindo a alma e o pulmão, analisando o mundo, o universo e tudo mais com olhos de novidade e bebendo. Bastante. Mesmo, muito. E é bom.

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